Todd Phillips é o Coringa da vida real

Quando a vida imita a arte, a arte imita a vida.

Vini Lima
3 min readOct 9, 2024

Hoje em dia, muito se fala sobre a dificuldade — em tempos de mídias sociais e hiperexposição — em se separar o artista da obra. Como ouvir uma música daquele cantor tão execrável em sua vida pessoal? Como assistir ao filme da diretora que feriu outrem?

Ora, mais um fato moderno que não traz nada de novo, mas que é potencializado pela tecnologia do presente.

Pois em ‘Coringa — Delírio a Dois’, damos um passo no sentido contrário: o autor é a obra. O criador é a criatura. Arthur Fleck é o Coringa. E o ‘Coringa’ é Todd Phillips (TP). Um ouroboros de metalinguagem. Ou, mais popularmente, o “dilema Tostines” em forma de película. Mas vamos dar um pequeno passo atrás e falar do primeiro filme.

O primeiro Coringa — empatia ou idolatria?

O primeiro filme — agora nitidamente à revelia de seu autor — se tornou um símbolo para a cultura RED PILL/INCEL, que vai de um proto fascismo, passando por uma misoginia e com pitadas de teoria da conspiração e culto à personalidade. TP não contava que, ao criar a sua versão do personagem dos quadrinhos, mostrando que o vilão Coringa é também vítima da violência de um sistema alheio a ele e produto de seus traumas, levasse as pessoas não ter apenas empatia pelo palhaço, mas a se inspirarem em seus atos. Lembrando, quais atos? Assassinasse pessoas a sangue frio.

Falha do emissor? Má interpretação do receptor? Viés de confirmação?

Aqui não tenho resposta sobre.

Fato é que a turba que não entendeu que o Coringa ser protagonista da história não quer dizer que ele seja o herói da mesma, dentro do filme, ela inicia uma revolução violenta na cidade — contra tudo que tá aí. Com o filme, na vida real, vimos ele servir de inspiração para movimentos como o que citei. E aí, para mim, já começa essa metalinguagem involuntária da saga Coringa.

Coringa 2 e o delírio de seus fãs

TP decidiu então mostrar para toda a sociedade que não, o Coringa não é um ícone. Não é um símbolo para se inspirar. E aqui, temos mais uma etapa dessa metalinguagem: se com o primeiro filme, a turba revolucionária “quebrou” a quarta parede e veio para o mundo real, o diretor, que se sente responsável pelos efeitos de sua criatura, se sente também impelido a pará-los em ambos os mundos.

Com o filme, TP busca, à sua maneira, desconstruir a figura mitológica do palhaço.

Dentro do filme, Arthur busca, à sua maneira, desconstruir a figura mitológica do palhaço.

E o que acontece com o séquito de fãs — dentro e fora da obra? Ambos atacam o seu criador: Todd Phillips vai ter que arcar com o retumbante fracasso de bilheteria, e Arthur Fleck, arca da forma que lhe é familiar.

Seus fãs? Seguem e seguirão idolatrando a sua criatura: ‘Coringa’ e Coringa.

A Saga ‘Coringa’ é o zeitgeist de nossos tempos

Em tempos de ascensão da extrema direita populista somos, ano após ano, surpreendidos por figuras cada vez mais abjetas vociferando discursos extremistas e pensamos: “Agora acho que deu. Não é possível que alguém se identifique e admire essa pessoa”

Plau. Quase dois milhões de votos em uma cidade.

Com o primeiro Coringa, ao mostrar os crimes violentos de Arthur, TP achava que toda a audiência iria repudiar o palhaço — mesmo empatizando e entendendo que seu sofrimento e traumas o levaram até ali. Porém, o que o criador não contava é que ao expor a criatura daquela forma, muitas pessoas se identificariam, o obrigando a, na sequência, ter que deixar clara a sua mensagem.

Vida e arte se retroalimentam, como uma cobra que devora a própria cauda.

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Vini Lima

34. Filósofo de boteco. Acredita que a empatia é a única salvação do mundo. Ou seja…